Tag Archives: Mary

Arquipélago da Memória

Era uma tarde abrasiva, na Saxónia alemã, na Hauptbannhof de Merseburg. Chegava ao fim uma aventura ERASMUS na antiga Alemanha comunista. A Mary e eu tinhamos a mochila bem equipada, documentos e últimos tustos nas bolsas da mochila, não fosse o Diabo apetecê-las e furar-nos os bolsos. Na mochila que andou sempre comigo (até mesmo no voo), trazia o pc portátil, uma garrafinha de Jegameister, a bandeira alemã assinada pelos camaradas da residência, e o Arquipélago da Insónia. Quebradiço, derrotista, magoado até, não com as «cadeiras» nem com o «baú de roupa velha», mas com o tempo, os anos virtuosos em sentimentos de amor por um lado, medo por outro. O amor afinal é pertença das pequenas coisas. A capa cinza, estampada com um miúdo parecido comigo, naquela viagem de 17 de Julho, numa Frankfurt igual ao que tinha visto nas minhas primeiras pisadas na Alemanha. Cheguei com a Mary às dez da noite a Frankfurt Öder, cansados e sujos, remetidos para uns bancos junto das casas de banho, à porta de entrada, envidraçada, automática, num abre e fecha a noite toda, o frio de uma chuvada enregelava os ossos. Quando chegaram as duas da manhã a Mary caiu no sono e acabou por se deitar no chão, e o miúdo semi nú voltou a olhar para mim. Lobo Antunes e memória do avô, o cavalo da família, o sotão com cheiro a mofo, o «baú de roupa velha», bem como eu trazia uma quantidade enorme de palavras, lembranças, o livro caído no chão, o cinzeiro atestado de pontas, o bis morgen do Sebastian naquele dia, um arquipélago de memórias portanto. Cada uma delas dolorosa à sua maneira, mas ao uni-las como une o nosso coração ou cérebro, uma a uma, construiu uma malha desenhada a régua e esquadro, um arquipélago aliás, de coisas que nos tiram o sono.

Matemático como Pedro Nunes, o inventor do nónio no cada vez mais esquecido século XVI, Lobo Antunes é matemático literário contemporâneo, e a obra o Arquipélago da Insónia foi a última peça do puzzle do que foi a minha vida na Alemanha.

João Andrade

 

Deixe um comentário

Filed under Crónicas